* Ana Rosa Silveira Cavalcante
A proposta de uma integração de saberes no campo da saúde mental não é uma questão nova. Antes mesmo de a psiquiatria e a psicologia constituírem-se enquanto disciplinas acadêmicas e científicas o homem se questiona sobre as causas que imprimem sofrimento psíquico a si mesmo e a seus semelhantes. Ao longo do último século vimos surgirem desde explicações puramente psicológicas, como as motivações inconscientes e os conflitos intrapsíquicos até explicações estritamente organicistas, como o desbalanço de neurotransmissores e , mais recentemente, as alterações genéticas.
No entanto, a discussão parece estar avançando , do dualismo cartesiano e da cisão entre corpo e mente para uma perspectiva mais integrativa , a qual considera que o comportamento e sofrimento humanos são o resultados da interação de múltiplos fatores. Neste campo, as pesquisas envolvendo a psicologia e a neurociência cognitiva e as psicoterapias de abordagem cognitiva vêm apresentando respostas promissoras.
Embora a discussão científica e filosófica acerca do tema seja amplamente interessante, não é sobre ela que pretendo debruçar-me neste artigo. Pretendo abordar uma outra questão, que embora guarde relações estreitas com a primeira é de cunho mais prático e , a meu ver, tão relevante quanto a outra para os clínicos que se defrontam diariamente com os desafios do manejo de pacientes com transtornos psíquicos.É a questão de como a terapia cognitiva e seu modelo de psicopatologia e de desenvolvimento dos transtornos emocionais, podem auxiliar, na prática clínica, psiquiatras que vêem-se enredados com questões que vão além do diagnostico e terapêutica farmacológica adequados.
O modelo cognitivo propõe que não são as situações em si, mas a forma que percebemos as situações que determinam nossos sentimentos e nossos comportamentos. Deste modo, não serão as atitudes do psiquiatra e sim a interpretação e o significado atribuído pelo paciente às mesmas, que determinarão seus sentimentos e seus comportamentos frente a diferentes momentos da prática clínica, como realização do diagnóstico, instituição da terapêutica medicamentosa, contatos telefônicos entre as consultas, efeitos adversos das medicações, entre outros.
Evidentemente, o escopo de situações nas quais a terapia cognitiva pode auxiliar o psiquiatra transcende o que é possível neste artigo. Tentarei, por esta razão, resumir em quatro aspectos principais o tema que me propus, nos parágrafos anteriores, a desenvolver.
1. Adesão ao tratamentoA maior parte de nós, psiquiatras, tem que lidar diariamente com esta questão.Todos os dias nos defrontamos com pacientes que, se não se recusam veementemente a fazer uso da medicação prescrita, simplesmente deixam de tomá-la sem nossa prévia autorização. A terapia Cognitiva nos ensina que não é a situação “em si” de ter que tomar um medicamento mas o que o paciente “pensa” sobre a situação que determina o comportamento. Deste modo, como terapeutas cognitivos devemos pensar: O que está passando pela cabeça deste paciente? Qual significado ele está atribuindo a essa medicação? Quais as crenças deste paciente em relação ao uso de medicações em geral ou dessa medicação específica?.O passo seguinte é o questionamento direto do paciente sobre seus pensamentos automáticos: O que passou pela sua cabeça quando eu lhe propus tomar essa medicação?. As respostas em geral são as mais variadas e por vezes surpreendentes. “Pensei que iria ficar igual minha mãe, tomando remédio para sempre”; ”Pensei que iria ficar abobado”, “ Pensei que estava louca”, “pensei que o meu pânico iria piorar”;”Só toma remédio quem é incapaz”, apenas para citar algumas possibilidades.
Bem, se não sabemos qual o significado o nosso paciente está atribuindo à medicação, dificilmente compreenderemos suas razões para resistir ao tratamento, e compreender nossos pacientes já é um grande passo. Mas como frisa Arthur Freeman em seu livro: As 10 bobagens mais comuns que as pessoas Inteligentes cometem – E técnicas eficazes para evitá-las, apenas compreender não basta . É preciso fazer algo a respeito. As técnicas cognitivas são ferramentas poderosas neste caso. Para esta situação específica, cito três técnicas em especial: O exame de evidências, o inventário de vantagens e desvantagens e o exercício de reatribuição de responsabilidade.
O exame de evidências ajuda o paciente a perceber quais os erros de pensamento está cometendo acerca da situação. O paciente pode, por exemplo, ter um pensamento de que irá ficar “abobado” com o uso de determinado medicamento. Uma intervenção possível para questionar esse pensamento seria perguntando ao paciente sobre as evidências envolvendo essa situação. Quais as evidências a favor do pensamento de que ele vai ficar abobado?Há alguma evidência contrária a esse pensamento? Quantas pessoas ele conhece que tomam esse medicamento? Quantas ficaram ”abobadas”? Caso ele tenha algum efeito colateral significativo, quais as evidências de que os efeitos não podem ser manejados? Quais os recursos que ele teria para lidar com isso? Poderia chamar seu médico para que ele o orientasse? Poderia parar a medicação e procurar ajuda? Há alguém que ele que conhece toma esse medicamento e ainda assim leva uma vida normal? E assim por diante. A idéia do exame de evidências é ampliar a gama de possibilidades que podem explicar o fato de o paciente ter que tomar uma medicação e suas possíveis conseqüências.
O inventário de vantagens e desvantagens auxilia o clínico a pesar com o paciente os prós e os contras de experimentar tomar uma medicação ou de continuar tomando.Juntos, médico e paciente dividem uma folha ao meio e colocam deu um lado as vantagens de fazer uso da medicação e de outro as desvantagens.Esta técnica trás consideráveis vantagens. O processo decisório é compartilhado entre médico e paciente, permitindo que ambos tenham papel ativo nele, o que dá ao paciente uma sensação maior de controle sobre sua vida e não
de estar sendo controlado pelo médico. Em geral pacientes percebem vantagens em tomar a medicação que não estavam sendo por ele avaliadas, sem precisar que o médico discorra sobre elas e o médico percebe mais claramente as desvantagens colocadas pelo paciente que o fazem não tomar a medicação, podendo, muitas vezes, diminuir ou reduzir essas desvantagens ou mesmo realizar uma troca de medicação, quando os pontos negativos superam os positivos.
O exercício de reatribuição de responsabilidades costuma ser útil em duas situações relação à adesão tratamento.Quando o paciente queixa-se de efeitos colaterais demasiados ou quando o paciente atribui sua melhora apenas à medicação.Fazemos então um gráfico em forma de pizza e damos uma porcentagem de responsabilidade a cada fator que concorre para a ocorrência daquela situação. Um paciente pode, por exemplo, queixar-se de que estava andando na rua e sentiu tonturas, e atribuir 100% dessa ocorrência à medicação. Então perguntamos ao paciente : como estava o clima? Ele havia comido? Quanto o fato de estar em jejum pode ter contribuído para a tontura? E o fato de estar andando no sol há mais de 1 hora? Quanto ele ficou ansioso quando isso ocorreu?A ansiedade contribuiu em alguma porcentagem para piorar a tontura? Ao final podemos concluir que a medicação concorreu com apenas 20% de contribuição para a ocorrência da tontura.
Não é interessante para nossos pacientes que estes considerem a medicação como única possibilidade para estarem bem. Para que tenham uma boa evolução eles precisam, além disso, acreditar nem suas capacidades e habilidades.Por esta razão, muitas vezes é necessário que eles percebam que a medicação fez algo por eles, mas que eles vêm fazendo algo por si mesmos e que a sua melhora é resultante da conjunção desses fatores.O exercício de reatribuição de responsabilidades costuma ser de grande auxílio nestas situações e em geral é um grande alívio quando os pacientes percebem que o tratamento medicamentoso é responsável pó “uma parte” do que eles são, mas certamente não por tudo que acontece em suas vidas.
2. Aceitação do diagnósticoMuitos de nossos pacientes questionam seus diagnósticos. Sem dúvida isso é saudável e desejável até certo ponto. Significa que nossos pacientes são seres humanos inteligentes, os quais não acreditam cegamente na primeira coisa que lhes dizemos. Atualmente, com a disseminação das informações acerca dos transtornos psiquiátricos, acessíveis pela internet a qualquer pessoa, temos que estar preparados para esse tipo de questionamento.
No entanto, algumas vezes, o questionamento excessivo envolve distorções que o próprio paciente está apresentando acerca do significado de determinado diagnóstico e do comportamento que acompanha essa visão distorcida.
Em uma newsletter do Instituto Beck publicada em 2005, Judith Beck nos conta como um médico auxiliou seu paciente com Transtorno Bipolar do Humor a aceitar seu diagnóstico e atribuir um significado diferente a seu transtorno. Inicialmente, fez uma abordagem psicoeducacional , instruindo o paciente sobre como é feito o diagnóstico em psiquiatria, qual sua base racional e como os sintomas do paciente encaixavam-se nesse transtorno. Depois, utilizando o questionamento socrático, elicitou junto ao paciente o significado atribuído por ele ao fato de ter Transtorno Bipolar. Este revelou que ter transtorno Bipolar significava para ele que tinha uma doença terrível e que por isso sua vida seria terrível. Essa atribuição de significado pelo paciente poderia comprometer não só a aceitação do diagnóstico mas também a aderência ao tratamento. Após questionar as evidências acerca desse pensamento, concluíram que isso aconteceria somente caso o paciente não recebesse tratamento adequado para seu transtorno, o que aumentou a tendência do paciente a colaborar com o tratamento.
Da mesma forma que nos conta Judith Beck, podemos auxiliar, através da utilização de técnicas cognitivas, nossos pacientes a terem uma maior aceitação de seus diagnósticos e atribuir um significado mais realista a estes, podendo assim implementar estratégias eficazes de enfrentamento para seu problema. Uma vantagem adicional da utilização das técnicas cognitivas neste caso é que, ao invés de tentarmos impor nossa opinião aos pacientes, os ajudamos a compreender nosso ponto de vista e a nos ver como aliados na busca de uma vida melhor.
3. Relação médico-paciente ( Aliança )O tema da relação médico-paciente já foi amplamente estudado pelos teóricos da psicologia médica. É sabido que o estabelecimento de uma relação médico – paciente saudável contribui de forma favorável para uma série de questões relativas ao tratamento, desde o seguimento das orientações médicas de forma adequada até a melhora do estado geral do paciente independentemente do tratamento somático. É sabido também que tanto o médico quanto o paciente podem, em algumas ocasiões, apresentar comportamentos que comprometem o bom andamento dessa relação.
Para nós psiquiatras, essa questão é de especial importância, uma vez que muitas vezes lidamos com indivíduos que já têm, por conta de seus problemas emocionais, dificuldades significativas em estabelecer vínculos saudáveis, fato que se repete em seu relacionamento com o médico.A Terapia Cognitiva nos ensina que é necessário estabelecer, antes de mais nada, uma boa aliança terapêutica. A Aliança terapêutica baseia-se no estabelecimento de um relacionamento genuíno, empático e o mais igualitário possível entre médico e paciente. Médico e paciente funcionam como uma equipe, que trabalha colaborativamente para que o paciente atinja suas metas de tratamento.Nesse modelo, as decisões são discutidas em uma base racional e são pesados os prós e contras da maioria das decisões. O médico funciona como um orientador mais experiente, que vai fornecer ao paciente o embasamento científico necessário para que possam tomar juntos as decisões importantes acerca do tratamento.
Evidentemente, nem sempre a relação é assim tão fácil e livre de transtornos.Continuamente os pacientes avaliam , através de seu fluxo ininterrupto de pensamentos automáticos, o psiquiatra e suas atitudes. O psiquiatra por sua vez, como ser humano que é, o faz da mesma forma. E como em qualquer outra relação humana, ambos podem fazer avaliações imprecisas e disfuncionais acerca do que ocorre durante a consulta e nos contatos posteriores a ela.
4. Abordagem interdisciplinarEmbora o trabalho em equipe e a interlocução entre profissionais de diferentes áreas seja amplamente estimulada no mundo atual, esta é uma relação que , não raro, traz pontos de conflitos e tensões. Profissionais de diferentes áreas tendem a ver um mesmo paciente pelos paradigmas próprios de sua profissão.Deste modo, as opiniões tendem a ser muitas vezes divergentes ou até mesmo antagônicas.
A Terapia Cognitiva propõe um modelo integrador, em que diferentes áreas de conhecimento podem convergir. Por essa razão, o psiquiatra dificilmente encontra resistência significativa ao trabalhar em conjunto com o terapeuta cognitivo. Ao contrário, a existência de uma intervenção baseada em um planejamento contínuo do tratamento e o foco em metas e objetivos específicos, fazem da terapia cognitiva uma abordagem sob medida para facilitar essa parceria.Psiquiatra e Terapeuta podem planejar juntos, por exemplo, questões delicadas envolvendo o manejo dos casos, como a concessão de licenças médicas e o retorno ao trabalho, Introdução e retirada de medicação, mudanças do paciente para locais onde tenha maior proteção da família, realização de procedimentos médicos delicados, entre outros. Quando essas decisões são tomadas com base em uma conceituação cognitiva precisa do caso e em um planejamento em relação ao momento da terapia e da flexibilização de suas crenças que o paciente está passando, certamente seu índice de sucesso tende a ser maior. Além disso, Terapeutas Cognitivos adaptam a intervenção ao transtorno psiquiátrico específico que o paciente está apresentando, tornando a linguagem e a comunicação ao paciente mais uniforme e compreensível.
ConclusãoA partir das considerações acima conclui-se que o uso de técnicas cognitivas na prática clínica psiquiátrica pode ser um instrumento valioso de intervenção em diversas situações habituais da prática clínica.
- Dra Ana Rosa Silveira Cavalcanti
Psiquiatra da Infância e Adolescência
Especialista em Terapia Cognitiva
Campinas- SP
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